Arthur RIMBAUD, "Sangue Ruim" / "Noite do inferno" (tradução Ana Rossi)




SANGUE RUIM

Tradução de Ana Rossi

Fonte : Arthur Rimbaud, “Mauvais sang” in Poésies, Une saison en enfer, Illuminations, [Préface de René Char, Edição organizada por Louis Forestier], Paris, Gallimard, 1999,  p. 179-187


Dos meus ancestrais gauleses tenho o olho azul e branco, o miolo estreito e a inabilidade para a luta. Encontro minhas vestimentas tão bárbaras quanto as deles. Mas não besunto meu couro cabeludo.
Os Gauleses eram retalhadores de animais, os cremadores de ervas os mais ineptos de seu tempo.
Deles, tenho : a idolatria e o amor ao sacrilégio ; - ah ! todos os vícios, cólera, luxúria, - magnífica, a luxúria ; - sobretudo mentira e preguiça.

Tenho horror a todas as profissões. Mestres e obreiros, todos camponeses, horríveis. A mão na pluma vale a mão no arado  – Que século de mãos ! Nunca terei minha mão. Depois, a domesticidade até mesmo longe. A honestidade da mendicância me desola. Os criminosos dão nojo como os castrados : estou intacto, e isto nem me importa.

Mas ! quem tanto fez minha língua pérfida que ela guiou e salvaguardou minha preguiça até aqui ? Sem nem me servir para viver do meu corpo, e mais ocioso que o sapo, vivi em todos os lugares. Nenhuma família da Europa que eu não conheça. – Isto é, famílias como a minha que têm tudo da declaração dos Direitos do Homem. – Conheci cada filho de família !

Se tivesse antecedentes com um ponto qualquer da história da França !
Mas não, nada !
Para mim é evidente que sempre fui de raça inferior. Não posso compreender a revolta. Minha raça se levantou apenas para pilhar: quais lobos com a besta que não mataram.

Eu me lembro da história da França, filha primogênita da Igreja. Pobre coitado, eu teria feito a viagem à terra santa ; tenho na cabeça estradas nas planícies da Suábia, mirada sobre Bizância, as muralhas de Solyme o culto de Maria, a ternura com o crucificado despertam em mim entre mil encantamentos profanos. – Leproso, estou sentado sobre as ervilhas quebradas e as urtigas ao pé de um muro roído pelo sol. – Mais tarde, guerreiro, teria acampado nas noites alemãs.

Ah ! tem mais : danço o sabá numa clareira vermelha com velhas e crianças.

Não me lembro de mais nada além desta terra e do cristianismo. Nunca terminaria de me rever neste passado. Mas sempre a sós : sem família ; até isso, que língua falava? Nunca me vejo nos conselhos do Cristo ; nem dos conselhos dos Senhores, - representantes do Cristo.

O que era no século passado : eu me situo apenas hoje. Não mais vagabundos, não mais vagas guerras. A raça inferior recobriu tudo – o povo, como se diz, a razão ; a nação e a ciência.

Ah ! a ciência ! Retomamos tudo. Para o corpo e para a alma, - o viático, - temos a medicina e a filosofia, - os remédios das donas de casa e as canções populares arranjadas. E as distrações dos príncipes e os jogos que eles proibiam ! Geografia, cosmografia, mecânica, química !...

A ciência, nova nobreza ! O progresso. O mundo em marcha ! Porquê ele não daria voltas?

É a visão dos números. Vamos ao Espírito. É muito-certo, é Oráculo o que digo. Compreendo, e não sabendo explicar sem palavras pagãs, quero calar-me.


O sangue pagão está de volta ! O Espírito está próximo ;  porquê Cristo não me ajuda dando à minha alma nobreza e liberdade. Pena ! O Evangelho passou ! o Evangelho ! o Evangelho.

Espero Deus com guloseima. Sou de raça inferior desde toda eternidade.
Eis-me na praia armoricana. Que as cidades se acendam à noite ! Minha jornada está acabada ; deixo a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões ; os climas perdidos me curtirão. Nadar, esmagar a erva, caçar, fumar, principalmente ; beber licores fortes feito metal ardente, - como faziam estes caros ancestrais ao redor do fogo.

Voltarei com membros de ferro, a pele escura, o olhar furioso: sobre minha máscara, hão de julgar-me de uma raça forte. Terei ouro. Serei indolente e brutal. As mulheres cuidam destes ferozes enfermos ao retornarem dos países quentes. Estarei ligado à coisa política. Salvo.
Agora estou amaldiçoado, tenho horror à pátria. O melhor é um sono bem bêbado no litoral.
Nós não vamos. – Retomemos os caminhos daqui, carregado com meu vício que empurrou suas sofridas raízes para o meu lado desde a idade da razão – que sobe ao céu, me bate, me derruba, me arrasta.
A última inocência e a última timidez. Está dito. Não levar ao mundo meus desgostos e minhas traições.
Vamos! A marcha, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera.
Para quem me alugar? Que besta deve-se adorar? Que imagem santa atacar ? Que corações romperei? Que mentira deverei sustentar?- Em que sangue caminhar?

Melhor, manter distância com a justiça. – A vida dura, o embrutecimento simples, - levantar, o pulso ressecado, a tampa do caixão, sentar-se, se asfixiar. Portanto, nada de velhice, nem de perigos: o terror não é francês.

- Ah! estou tão desleixado que ofereço a qualquer imagem divina ímpetos para a perfeição.
Oh! minha abnegação, oh! minha maravilhosa caridade! aqui abaixo, sim !
De profundis Domine, besta que sou !

Quando criancinha admirava o cativo intratável sobre quem se fecha, sempre, a masmorra; visitava os albergues e os mobiliados que ele teria sagrado com sua estadia; via com sua idéia o céu azul e o trabalho florido dos campos; farejava sua fatalidade nas cidades. Tinha mais força que um santo, mais bom senso que um viajante – e ele, ele só ! para testemunhar sua glória e sua razão.

Sobre as estradas nas noites de inverno, sem abrigo, sem roupas, sem pão, uma voz cingia eu coração gelado : “Fraqueza ou força : eis-te aqui, é a força. Você não sabe nem aonde vai, nem porque vai, entra em todas as partes, responde a tudo. Não te matarão mais do que se você fosse um cadáver.”  De manhã tinha o olhar tão perdido e a postura tão morta que aqueles que cruzei talvez não me tenham visto.

Nas cidades a lama aparece a mim repentinamente vermelha e preta como um gelo quando a lâmpada circula no quarto vizinho como um tesouro na floresta ! Boa sorte, gritei, e via um mar de chamas e de fumaças no céu ; e, à esquerda, à direita, todas as riquezas ardendo como mil milhões de trovoadas.

Mas a orgia e a camaradagem das mulheres eram a mim proibidas. Nem mesmo um companheiro. Me via diante de uma multidão exasperada frente ao pelotão de execução chorando pela infelicidade que não puderam compreender, e perdoando! – Como Joana d’Arc! – “Padres, professores, mestres, vocês se enganam livrando-me à justiça. Nunca fui deste povo daqui; nunca fui cristão ; sou da raça que cantava no suplício; não compreendo as leis; não tenho senso moral, sou um bruto: vocês se enganam...”

Sim, tenho os olhos fechados à sua luz. Sou uma besta, um negro. Mas posso ser salvo. Vocês são falsos negros, vocês, maníacos, avarentos. Mercador, você é negro; magistrado, você é negro; general, você é negro ; imperador, velho comichão, você é negro : você bebeu um licor não multado da fábrica de Satã. – Este povo é inspirado pela febre e o câncer. Enfermos e velhos são tão respeitáveis que eles pedem para serem fervidos. – O mais esperto é deixar este continente onde a loucura ronda para prover  cativos a estes miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam.

Ainda conheço a natureza?  me conheço? – Não mais palavras. Enterro os mortos em meu ventre. Gritos, tambores, dança, dança, dança, dança ! Nem vejo a hora quando, no desembarcar dos brancos, cairei no nada.

Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança !

Os brancos desembarcam. O canhão! Submeter-se ao batizado, vestir-se, trabalhar.

Recebi o golpe de graça no coração. Ah! eu não o tinha previsto !

Não fiz o mal. Os dias serão leves para mim, o arrependimento me será poupado. Não terei tido os tormentos da alma quase morta ao bem, onde sobe a luz severa como os círios funerários. O destino dos filhos de família, caixão prematuro coberto de lágrimas límpidas. Sem dúvida a devassidão é besta, o vício é besta; deve-se colocar a podridão de lado. Mas o relógio conseguirá tocar apenas a hora da pura dor! Serei levado como uma criança para brincar no paraíso no esquecimento de toda infelicidade?
Rápido! outras vidas são? – O sono na riqueza é impossível. A riqueza sempre foi bem público. O amor divino, o único, outorga as chaves da ciência.

Vejo que a natureza é apenas um espetáculo de bondade. Adeus quimeras, ideais, erros.

O canto razoável dos anjos se eleva do navio salvador: é o amor divino. – Dois amores! posso morrer de amor terrestre, morrer de devotamento ! Deixei almas cuja pena não se acrescerá com minha partida! Vocês me escolhem entre os náufragos; aqueles que restam são meus amigos ?
Salvem eles !
A razão nasceu em mim. O mundo é bom. Benzerei a vida. Amarei meus irmãos. Não serão mais promessas da infância. Nem a desesperança de escapar à velhice e à morte. Deus faz minha força, e eu louvo Deus.

O tédio não é mais meu amor. As raivas, as devassidões, a loucura da qual conheço todos os ímpetos e os desastres, - todo meu fardo está deposto. Apreciemos sem vertigem a extensão de minha inocência. Não seria mais capaz de pedir o reconforto de uma cacetada. Não creio ter embarcado nas bodas tendo Jesus Cristo como cunhado.

Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade na saudação : como persegui-la? Os gostos frívolos me deixaram. Não mais necessidade de devotamento, nem de amor divino. Não lamento o século dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo e caridade: guardo meu lugar no ápice desta angélica escada de bom senso.

Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou não... não, não posso. Sou dissipado demais, fraco demais. A vida floresce no trabalho, velha verdade: para mim, minha vida não está pesada demais, ela se esvoaça e flutua longe acima da ação, este caro ponto do mundo.
Como me torno moça velha com falta de coragem para amar a morte!
Se Deus me desse a calma celeste, aérea, a reza, - como os antigos santos. – Os santos! os fortes ! os anacoretas, artistas como não precisamos mais !
Farsa contínua! Minha inocência me faria chorar. A vida é a farsa a ser levada por todos.
Chega! Eis a punição. – Em marcha!
Ah ! os pulmões queimam, as têmporas rosnam! sob este sol, a noite ronda dentro dos meus olhos ! o coração... os membros...
Aonde vamos ? ao combate ? estou fraco! os outros avançam. As ferramentas, as armas... o tempo !..
Fogo ! fogo em mim ! Parado ! ou me rendo. – Covardes ! – Me mato ! Me jogo aos pés dos cavalos !
Ah ! ...
- Eu me acostumarei.
Isto seria a vida francesa, a senda da honra !

NOITE DO INFERNO

Engoli uma famosa tragada de veneno. – Três vezes Bendito seja o conselho que chegou a mim  – As entranhas me queimam. A violência do veneno torce meus membros, me torna disforme, me aterra. Morro de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, a eterna pena! Vejam como o fogo se levanta! Queimo como deve ser. Vai, demônio !

Tinha entrevisto a conversão ao bem e à felicidade, a salvação. Posso descrever a visão, o ar de inferno não suporta os hinos ! Eram milhões de criaturas charmosas, um suave concerto espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, o que mais ?
As nobres ambições !

E é ainda a vida ! – Como a danação é eterna! Um homem que quer se mutilar é realmente amaldiçoado, não é ? Acredito estar no inferno, logo estou. É a execução do catecismo. Sou escravo de meu batizado. Pais, vocês fizeram minha infelicidade e a de vocês. Pobre inocente! – O inferno não pode atacar os pagãos. – Ainda é a vida ! Mais tarde, as delícias da danação serão mais profundas. Um crime, rápido, que eu caia no vazio, pela lei humana.

Cale-se, mas cale-se !... É a vergonha, a repreensão, aqui : Satã dizendo que o fogo é abjeto, que minha cólera é terrivelmente estúpida – Chega !... Erros que me ditam, magias, falsos perfumes, músicas pueris. – E dizer que tenho a verdade, que vejo a justiça : tenho um julgamento são e definido, estou pronto para a perfeição... Orgulho. – A pele da minha cabeça se resseca. Piedade! Senhor, tenho medo. Tenho sede, quanta sede! Ah! a infância, a erva, a chuva, o lago sobre as pedras, o clarão do luar quando o sino soava doze... o diabo está no campanário a esta hora. Maria! Santa Virgem!... Horror de minha idiotice.  

Lá longe, não são almas honestas que me querem bem... Venham... Tenho um travesseiro na boca, elas não me ouvem, são fantasmas. Depois, ninguém nunca pensa em outrem. Não se aproximem! Sinto o queimado, com certeza.
As alucinações são inumeráveis. Sim, é o que sempre tive: não ter mais fé na história, esquecer os princípios. Calarei isto: poetas e visionários estariam enciumados. Sou mil vezes mais rico, sejamos avarentos como o mar.
Ah isto! o relógio da vida parou há pouco. Não estou mais no mundo. – A teologia é séria, o inferno é certamente em baixo – e o céu em cima. – Êxtase, pesadelo, sono em um ninho em chamas.
Quanta malícia, na atenção, nos campos... Satã, Ferdinando corre com as sementes selvagens... Jesus caminha sobre os espinhos purpúreos sem curvá-los... Jesus caminhava sobre as águas agitadas. A lanterna mostrou-o de pé para nós, branco com tranças marrons no flanco de uma onda esmeralda...

Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, vazio. Sou mestre em fantasmagorias.
Ouçam!...
Tenho todos os talentos! – Não há ninguém aqui e há alguém: não queria espalhar o meu tesouro. – Querem cantos negros, danças de houris? Querem que eu desapareça, que eu mergulhe à procura do anel ? Querem? Farei ouro, remédios.
Confiem então em mim, a fé alivia, guia, cura. Todos, venham, - até as criancinhas, - que eu console vocês, que espalhe para vocês seu coração, - coração maravilhoso! – Pobres homens, trabalhadores! Não peço rezas; com sua confiança apenas, serei feliz.

- E pensemos em mim. Isto me faz pouco lamentar o mundo. Tenho chance de não sofrer mais. Minha vida foi apenas doces loucuras, é lamentável.
Ah! façamos todas as caretas imagináveis.
Decididamente, estamos fora do mundo. Não há mais dinheiro. Meu tato desapareceu. Ah! meu castelo, minha Saxe, meu bosque de salgueiros. As noitinhas, as manhãs, as noites, os dias... Estou lasso!
Deveria ter meu inferno para a cólera, meu inferno para o orgulho, - e o inferno da carícia; um concerto de infernos.

Morro de lassidão. É o túmulo, vou para os vermes, horror do horror! Satã, farsante, você quer me dissolver com teus charmes. Reclamo. Reclamo! um golpe de forquilha, uma gota d’água.

Ah! retornar à vida ! Jogar os olhos sobre nossas deformidades. E este veneno, este beijo, mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo! Meu Deus, piedade, me escondam, me comporto muito mal! – Estou escondido, e não estou.
É o fogo que se levanta com seu amaldiçoado.

Commentaires

  1. A essa altura imagino que você não lê mais o blog, mas só queria dizer que esse poema é fantástico. eu já li tudo mais de 100 vezes e nunca consigo entender tudo, se é que é possível. valeu

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    1. Cristiano, leio sim. Muito obrigada pela sua mensagem. Esse poema do Arthur Rimbaud é realmente fantástico. E a tradução foi muito difícil. É um poema para se "meditar", ou de reflexão, como catalogam alguns autores.

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