Crítica Literária/ Critique littéraire, by Ana Rossi _ A vida em primeira pessoa [La vie : première personne], de Thaís de Mendonça

Crítica literária, by Ana Rossi

Com muito carinho, li o romance de minha amiga Thaís de Mendonça, que nos brinda com uma estória da jornalista mineira, Martina Mirabella Beauford-Carvalho, filha de ex-governador do estado de Minas Gerais, que chega à Brasília transferida da capital mineira, Belo Horizonte, iniciando uma nova etapa de vida, e terminando aqui sua trajetória aos 35 anos de idade. Os 52 capítulos do romance se entrelaçam de maneira a mostrar a trajetória social, existencial e espiritual da personagem principal, que ora colocam em evidência os bastidores da política na capital da república, ora trazem à tona suas memórias dolorosas da infância, além de mostrar suas difíceis e complexas experiências amorosas. Com tato, a narradora nos faz descobrir essa história composta por rastros de memória jamais resolvidas oriundas da infância que a heroína carrega consigo, e nas quais afunda-se cada vez mais. Esses fragmentos de memória que a aprisionam fazem dela uma personagem trágica, que esconde seu sobrenome composto, sua ascendência francesa, e é condenada a viver uma vida pela metade, vida essa controlada por forças que ela não compreende e não domina. Assim, o tecido textual nos leva fatalmente a um desfecho mais ou menos anunciado, no qual, como a personagem Macabéia, da Hora da Estrela de Clarice Lispector, nossa heroína Martina Mirabella também luta para atingir seus sonhos. Sem nenhuma condição de romper a bolha que a prende a atos e sentimentos do passado, tal como o abandono afetivo por parte de sua mãe desde seu nascimento, a adoração e a ausência do pai, e a pressão psicológica de sua mãe que força a menina de cinco anos a repetir a frase “eu quero ser puta” para punir o pai no âmbito de um rancoroso divórcio no qual os filhos se tornaram troca de moeda para os adultos machucarem-se um ao outro, Martina Mirabella caminha pelo mundo com esse fardo que lhe foi agraciado pelos pais. Assim, a mudança para a capital da República não foi o suficiente para que a heroína se desfizesse dessas dores antigas, sobre as quais ela evita, inclusive comentar com o irmão  Fabrizio, o preferido da mãe, quando ele vem visitá-la em Brasília.

A curta vida de Martina Mirabella compõe-se como um réquiem trágico no qual o lugar do feminino é esmagado de maneira impiedosa desde seu nascimento, quer seja na infância, quer seja nas relações de trabalho e, em particular, nos assédios dos quais ela é testemunha com respeito a si ou às colegas jornalistas, alguns mais sutis como olhadas para o decote, outros bem menos sutis e mais aterrorizantes como quando a heroína é forçada a ter relações sexuais sem o seu consentimento – em outras palavras, ela é estuprada -, quer seja nas relações que enfrenta quando das investigações profissionais lidando com corrupções, mentiras, e até com mortes que ela, no fundo, não consegue ultrapassar. De maneira paradoxal e complexa, a heroína também usa, em algumas situações, o seu corpo de mulher para chamar os olhares. No entanto, por não conseguir controlar esse movimento, a heroína perde-se nele, restando a solidão como legado. Por outro lado, a profunda empatia de Martina Mirabella constitui-se em uma faca de dois gumes, pois, ao estabelecer uma relação verdadeiramente humana com os demais personagens, ela não consegue proteger-se dos desejos alheios sobre si que transformam sua vida em uma descida ladeira abaixo sem consciência. Ao anunciar na primeira frase do primeiro capítulo a frase “A vida não é aquilo que se vê”, o romance já prenuncia o final trágico de Martina Mirabella. Eu completaria: “A vida é principalmente aquilo que não se vê, pois aquilo que não se vê nos compõe verdadeiramente. Daí a urgência de olhar para si”. Obrigada, Thaís!

Mendonça, Thaís de, A vida em primeira pessoa, São Paulo, Desconcertos Editora, 2021. 


Critique littéraire, by Ana Rossi

Avec beaucoup de tendresse, j’ai lu le roman d’une amie, Thaís de Mendonça, qui nous raconte l’histoire d’une journaliste de l’état du Minas Gerais, Martina Mirabelle Beauford-Carvalho, qui arrive à Brasília en provenance de la capitale du Minas Gerais, Belo Horizonte, pour commencer une nouvelle vie et finir sa vie à l’âge de 35 ans. Les 52 chapitres du roman s’entrelacent de manière à montrer la trajectoire sociale, existentielle et spirituelle du personnage principal qui, des fois, mettent en scène les coulisses de la politique dans la capitale de la République, des fois montrent ses douloureuses mémoires de l’enfance, et des fois montrent ses difficiles et complexes relations amoureuses. Avec tact, la narratrice nous fait découvrir cette histoire composée de bribes de mémoire de l’enfance jamais résolues que l’héroïne porte avec elle, et dans lesquelles elle se noie de plus en plus. Ces fragments de mémoire qui l’apprisionnent font d’elle une personnage tragique qui cache son nom de famille composé et son ascendance française, et est condamnée à vivre une vie à moitié, vie controlée par des forces qu’elle ne comprend pas et qu’elle ne domine pas. Ainsi, le tissu textuel nous amène fatalement à une fin plus ou moins annoncée, dans laquelle, comme le personnage de Macabéia, de Clarice Lispector dans A hora da Estrela [L’heure de l’étoile],  notre heroïne Martina Mirabelle lutte également pour atteindre ses rêves. Sans aucune condition de rompre la bulle qui l’apprisionne aux faits et sentiments du passé, tels que l’abandon affectif de la part de sa mère à sa naissance, l’adoration et l’absence du père, et la pression psychologique de sa mère qui force la fillette de cinq ans à répéter la phrase « je suis une pute » pour punir le père dans le cadre d’un divorce marqué par la rancoeur dans lequel les enfants sont devenus des pièces de change pour que les parents se blessent l’un à l’autre, Martina Mirabella chemine dans le monde avec ce fardeau qui lui fut dédié par ses parents. Ainsi, le déménagement vers la capitale de la République ne fut pas suffisant pour que l’heroïne se défit de ses anciennes douleurs sur lesquelles elle évite d'en parler avec son frère Fabrizio, le préféré de sa mère, lorsque celui-ci vient la visiter à Brasília.

La courte vie de Martina Mirabelle se tisse comme un tragique requiem sur lequel l’espace du féminin est écrasé sans merci depuis sa naissance, que ce soit au cours de son enfance, que ce soit lors des relations de travail et, en particulier, lors des harcèlements dont elle est témoin que ce soit à son égard ou vis-à-vis de ses collègues journalistes, quelques-uns de ces harcèlements étant plus subtils, comme un regard sur le décolleté, tandis que d’autres le sont beaucoup moins, et sont même terrifiants lorsqu’elle est obligée à avoir des relations sexuelles sans son consentement – en d’autres mots, elle est violée -, voire encore dans le cadre de relations rencontrées lors de ses investigations professionnelles où elle témoigne de cas de corruption, de mensonges et des morts qu’au fond, elle n’arrive pas à dépasser. De manière paradoxale, l’héroïne utilise aussi son corps de femme pour attirer les regards. Cependant, comme ele n’arrive pas à contrôler ce mouvement, elle s’y perd, ne lui restant que la solitude. Aussi, la profonde empatie de Martina Mirabelle est une épée à double tranchant car en établissant une relation véritablement humaine avec les autres personnages elle n’arrive pas à se protéger du désir des autres sur elle, ce qui a pour effet de transformer sa vie dans une descente aux enfers, sans conscience. Lorsque le roman s’ouvre avec la phrase « La vie n’est pas ce qui se voit » cela annonce déjà la fin tragique de Martina Mirabelle. Je complèterais : « La vie est surtout ce qui ne se voit pas, car ce qui ne se voit pas nous compose véritablement. D’où l’urgence de se voir. » Merci Thaís!

 



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